Colcurinho e Viriato

na obra de

Brás Garcia de Mascarenhas

"Viriato Trágico"

 

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Prefácio

 

I — Primeiras lutas

 

II — Fenícios, Cartagineses e Romanos

 

III  — Duas cidades conquistadas

 

IV  — Derrota e traição de Galba

 

V — Vingança de Viriato

 

VI —A  Paz

 

VII —Mais guerra

 

VIII —Sonho   de  Viriato

 

IX — Recomeça   a   luta

 

X —Tragédia 

 

Garcia  de  Mascarenhas — Nota   biográfica
 


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Brás Garcia de Mascarenhas

"Viriato Trágico"

 

Prefácio

 

A adaptação em prosa do «Viriato Trágico», — obra que foi e será sempre magnífica lição de civismo — é talvez um pouco livre demais. Não o estranhem os leitores. Assim o impunham, não só as dimensões do vasto poema heróico de Brás Garcia de Mascarenhas — dois volumes contendo vinte cantos, na edição de 1846, — mas ainda a conveniência de aligeirar a extensa narrativa, aliviando-a dalguns episódios não indispensáveis ao desenvolvimento do assunto.

 

Tal como se apresenta, é uma síntese vibrante da vida e feitos de Viriato, na interpretação lírica e épica do nosso autor. Não se enfraqueceu nem desvirtuou a convicção patriótica e nobilíssima que anima a evocadora epopeia de Brás Garcia de Mascarenhas, nem se diminuiu o alcance. A figura e a presença de Viriato — devoção eterna dos corações portugueses — surge nestas páginas dentro dos moldes amplos e com a energia lusíada, que o seu panegirista do século XVII entusiasticamente fixou.

 

 

     

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Brás Garcia de Mascarenhas

"Viriato Trágico"

 

 

 

 

I — PRIMEIRAS LUTAS 

 

Lá nas alturas da nevada serra, que é a mais alta serra portuguesa, serra que brilha ao sol se o gelo a cobre e da Estrela se chama porque brilha — nasceu Viriato, esse pastor guerreiro, em guerreiro e em herói tornado um dia, para glória imortal da Lusitânia. Seus pais quem eram? Quem o amamentou? Quem o criou, guiou, e amparou, quando menino, nos primeiros passos? Ninguém jamais o soube ou saberá! Tão da montanha ficou sendo logo, irmão das fragas, das nascentes límpidas, dos companheiros rudes e valentes; haurindo o ar dos cimos com delícia; conhecendo os mistérios, os segredos, os caminhos e atalhos das subidas, e a paz silenciosa das lagoas; tão fraterno aos encantos e asperezas, às belezas austeras da paisagem — que do berço natal, da terra-mãe o dizem filho só, e nem recordam o nome, o apelido da família.

 

Certo é que, de criança, Viriato por ali pastoreava o seu gado, sofrendo gostosamente o rigor do frio, resguardando apenas o corpo com alguma pele de animal, apoiando-se ao duro cajado nas marchas difíceis, mas não abandonando nunca o arco e as flechas que trazia a tiracolo, nem o punhal que segurava no cinto. Caçador robusto e audacioso, as próprias águias o temiam. E, seguido do seu cão preferido, não há bicho selvagem que o não receie, não há lobo que ele não persiga e mate. O toque da sua buzina acorda a cada passo os ecos da montanha, e chama os camaradas para a luta contra as feras.

 

Assim forte, robusto e decidido, escolhem-no como chefe os outros serranos e nenhuma expedição aventurosa se faz sem que Viriato a comande. Mas também andava muitas vezes sozinho, perdido nos seus pensamentos, como se já sentisse ou adivinhasse as alegrias e dores do heróico destino que o esperava.

 

(…)

 

 

     

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Brás Garcia de Mascarenhas

"Viriato Trágico"

 

 

 

 

VI — A PAZ

 

A fama de Viriato corria mundo. Brilhava como estrela pura no claro céu da Lusitânia. Alongava-se, irradiava na Península inteira. E na Roma imperial, que ele vencera, mas que o admirava e temia, inquietava os governantes.

 

Na Serra da Estrela, para onde Viriato regressara carregado dos loiros da vitória, houve festas durante vinte dias. Nenhum pastor a elas faltou, e de longe acorreram numerosos e alegres forasteiros. Os estandartes conquistados aos Romanos enfeitavam as povoações, ondulando ao sopro vivo das brisas da altura. Chegaram soldados de todas as cidades das encostas, que o génio de Viriato libertara do domínio de Roma, e as gentes da montanha recebiam-nos entre aclamações ruidosas. Torres e arcos de verde folhagem se construíram, e um grande circo se ergueu para torneios e cavalhadas. Não passava uma hora sem alegria. No último dia, porém — como aviso de futuras provações — uma doença súbita levou Colcorinho, o velho soldado, valente e prudente, que tanto ajudara Viriato e que, antes de expirar, assim lhe falou:

 

— «Vejo-te no auge da prosperidade. Tudo são festas, risos, contentamento. Por isso morro satisfeito. Mas não adormeças, Viriato, na preguiça venenosa do triunfo. Os Romanos não são gente que se esqueça de tirar desforra. Tem cuidado. Vigia os movimentos e ambições do inimigo. A felicidade não dura se não a defendermos com energia varonil. Roma é astuta. Cuidado! O que temo, Viriato, é só o que deves temer: — uma nova e mais audaz investida da Serra. Mal eu dê o último suspiro, queima-me o corpo e espalha as cinzas neste ar salubre: — que elas voem aqui, que todos as respirem, que a todos inspirem um pouco da coragem e do amor da Pátria que em vida sempre me inspirou e conduziu...»

 

Calou-se Colcorinho, e em breve expirou. Viriato verteu lágrimas de saudade pelo companheiro e mestre de tantas lutas e de tantos anos. Mas não olvidou o sensato conselho. E, mal os forasteiros que tinham vindo às festas regressaram aos seus lares, logo principiou a fortificar a Serra, a adestrar os guerreiros para novos combate, e a preparar e a limpar o armamento do seu exército de serranos.

 

Ao mesmo tempo não descuidava os trabalhos de campo, mandando arrotear, lavrar as terras, semear prados, enviando ordens aos Lusitanos do litoral — navegadores que foram antes dos remotos Fenícios e Gregos — para construírem embarcações sólidas, destinadas a estabelecer comércio com outros povos.

 

A azáfama que reinava na Serra era constante. Viriato a tudo presidia, aqui estimulando o zelo destes, além despertando preguiças teimosas, e sempre de atenção voltada para o possível retorno das coortes de Roma. Foi então — rezam crónicas antigas — que ele casou com a filha do riquíssimo Astolpas, Lusitano muito respeitado. Mas nem cerimónia tão solene lhe fez esquecer as suas obrigações de chefe, ou mudar os seus hábitos de severa sobriedade.

 

Astolpas, todo envaidecido pelo casamento da filha, organizou um banquete aparatoso. Diante dos numerosos convidados ostentou vasos de oiro, vestes raras, ornamentações de excepcional beleza. Viriato, ao contemplar tanta prodigalidade de inúteis adornos, e as iguarias suculentas oferecidas aos assistentes, nem se moveu. Encostado à sua lança, olhava tudo com ironia não disfarçada e não dizia palavra. Aceitou um pouco de pão e de carne, que repartiu entre os soldados que o tinham acompanhado. E assim que o banquete — no qual não tomara parte — acabou entre libações ruidosas, foi buscar a noiva, saltou com ela abraçada para cima do cavalo fogoso, e embrenhou-se no mais cerrado da montanha selvagem a caminho dos campos onde se exercitavam as suas tropas aguerridas.

 

Bem fazia ele em não as abandonar, pois a presença do chefe é sempre incentivo e prémio de quem tem de lutar! De mais a mais, já os Romanos, instalados ao Oriente da Península tentavam levantar cabeça, e vinham surgindo em pequenas hostes num e noutro ponto, desejosos de bater-se contra as pequenas avançadas lusas. Dão os Romanos pela pouca gente de Viriato, que mesmo assim não os deixava avançar, e mandam vir socorros urgentes. Em breve mil soldados de Roma se encontram em frente de trezentos Lusitanos e logo a peleja toma grandes proporções. Já olvidavam, esses Romanos teimosos, a coragem intrépida dos Lusos! Eles são mil, os Lusitanos trezentos — mas trezentos lusitanos de rija têmpera valem bem mil e mais romanos desorientados. E belamente o mostram, nesse recontro rápido e sangrento. Até um lusitano bárbaro, Serralvo, que regressava do campo de batalha, solitário e carregado de despojos inimigos, consegue triunfar de muitos romanos escondidos atrás duns rochedos. Arrebata uma lança das mãos dum atacante que estava a cavalo, e desbarata os outros não deixando que lhe toquem. Dir-se-ia que a alma de Viriato por momentos se alojara no peito forte do temerário Serralvo!

 

Desgraçados dos Lusitanos, porém, que, longe da serena direcção de Viriato, se esquecem de que mal vai aos vitoriosos, se acaso adormecem sobre o fofo leito da vitória e do orgulho! Para celebrar a derrota dos Romanos, seiscentos soldados da Serra resolvem fazer uma peregrinação ao Templo dum Deus que veneram. Iam sem armas, desprevenidos e contentes. Mas os Romanos espreitavam-nos, e obrigaram-nos a render-se. Viriato, ao saber a triste notícia, tudo abandona para ver se pode salvar e desafrontar os seus. Era bem certo que findara a paz! Recomeçava a violência da guerra!

 

Pobre paz, afinal, aquela que se julgava ser a grande paz da Lusitânia! Roma não desiste de ambições iníquas. A liberdade da Lusitânia ofende a sua vaidosa e cobiçosa arrogância. Viriato não repousará, não descansará, pois!... E logo decide continuar, com mais ardor e mais persistência do que nunca, a batalha sem descanso contra o inimigo da sua Pátria.

 

 

 

     

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Brás Garcia de Mascarenhas

"Viriato Trágico"

 

 

Garcia  de  Mascarenhas — Nota   biográfica

 

 

BRÁS Garcia de Mascarenhas nasceu na vila de Avô, — Beira Alta, margens do Alva, — em 10 de Fevereiro de 1595. Estudou em Coimbra, onde se tornou conhecido pela audácia e graça dos seus ditos e atitudes.

 

Grande espadachim, cavalheiresco e leal, muito novo mostrou grande predilecção pela carreira das armas, na qual se distinguirá mais tarde.

 

Para desagravar ofensa grave feita a um amigo, feriu em duelo um jovem fidalgo. Isto lhe valeu ser preso. Mas fugiu da cadeia, e refugiou-se em Madrid. Em Espanha pouco se demorou, resolvendo tentar viagens mais longas a outros e mais distantes países. Pesa-lhe muito — confessou depois — viver na capital duma nação, cujo governo se tornara opressor do povo de Portugal.

 

O dia do seu embarque foi, para ele, um dia feliz. Ia contente por abandonar uma pátria inimiga da sua Pátria. Mas em breve o navio onde tomara passagem, foi atacado pelos Turcos. Assim teve logo ocasião de mostrar, defendendo-se com extrema valentia, as suas grandes qualidades de soldado. O pior é que, após renhida batalha e salvos os sobreviventes  do  combate pela  intervenção dos tripulantes duma nau holandesa, o comandante desta embarcou-os num bote que metia água e abandonou-os cruelmente à mercê das ondas.

 

Brás Garcia de Mascarenhas e os seus companheiros de infortúnio puderam chegar ou regressar à Andaluzia. Ali ficaram todos, menos ele, que de lá prosseguiu na viagem encetada, percorrendo algumas capitais da Europa. Voltando clandestina­mente a Portugal para ver a família, não ficou muito tempo quieto. Embarcou novamente e, desta feita, a caminho do Brasil. Tinha então vinte e oito anos.

 

No Brasil bateu-se contra os Holandeses, tomando parte nos combates que os expulsaram desses então nossos domínios da América do Sul. Aos trinta e sete anos voltou a Portugal — «apóstata do mar», como a si mesmo se chamou numa expressão de singular justeza — e em 1640 ofereceu-se a D. João IV para defender a causa sagrada da independência nacional. Combateu valorosamente, e foi depois nomeado governador da praça forte de Alfaiates.

 

Acusado falsamente de «ter tratos ocultos com Castela»,   aleivosia   perversa  de  seus   inimigos,   e preso na cadeia de Sabugal, conseguiu fazer chegar às mãos do Rei a narrativa em verso da infame perseguição que lhe faziam e do seu iníquo e inexplicável cativeiro.

 

Eis como esse grave e característico incidente da vida de Brás Garcia de Mascarenhas é contado no prefácio da edição de Viriato Trágico publicada em 1846:

«Na prisão solitária o privaram de toda a comunicação, e, subtraindo-lhe pouco a pouco o mantimento, lhe pretendiam abreviar os dias. Até que, vendo-se já desamparado de todo o favor humano, se valeu de sua indústria mandando pedir pelo seu servente que ao menos lhe mandassem um livro, seu ordinário alívio, já que lhe não consentiam o divertimento de escrever; e juntamente que, para seus achaques, lhe mandassem farinha, e linhas e tesoura para refazer seus vestidos. Logo lhe mandaram um Flos Sanctorum, que era o que mais lhe servia para se encomendar a Deus, e com o livro as mais miudezas que pedia. Pegando da tesoura foi cortando as letras uma a uma, as que lhe serviam do livro; fez cola de farinha com a qual unindo-as com muito vagar e indústria, compaginou uma discreta carta em verso mui limado para o senhor D. João IV, em que relatava sua prisão, e inocência, e dependurando-a pelas linhas da muralha no escuro da noite falou a um soldado da guarda, seu confidente, que a entregasse a seu irmão para que logo a levasse a Lisboa, como sucedeu. Lendo o rei a carta tão bem lançada, despediu logo um decreto em que ordenava aparecesse sem demora em Lisboa Brás Garcia de Mascarenhas.»

 

Um capítulo de romance, esta audaciosa iniciativa dum soldado da Restauração, que de tal maneira demonstrou, afinal, não lhe faltar imaginação poética bastante para inventar e compor lances difíceis e pitorescos, quer na vida, quer no papel! Mas, depois de recebido na corte com todas as honras, e de reposto no seu lugar de governador, tudo abandonou dentro de curto prazo. E, fatigado de tanta luta e de tanta agitação, recolheu à sua casa de Avô, onde morreu em 1656.

 


 

A obra principal de Brás Garcia de Mascarenhas é o poema Viriato Trágico que não se publicou durante a sua vida, e só quarenta e três anos após a sua morte foi editado pela primeira vez.

 

O que pretendeu Brás Garcia de Mascarenhas realizar nos vinte cantos do Viriato Trágico? Apenas a ressurreição, mais ou menos exacta, das lutas do herói serrano — serrano como o próprio autor do poema — contra os generais de Roma? Esse é, de facto, o seu assunto. Mas o motivo inspirador da obra, temos de ir procurá-lo no horror que Brás Garcia de Mascarenhas sempre sentiu e manifestou perante a escravidão a que estava reduzido Portugal, sofrendo sob o brutal jugo de Castela. Brás Garcia de Mascarenhas foi buscar um tema antigo — outros o fizeram e farão — para exteriorizar mais livremente a dor, o nojo e a indignada repulsa que, ao ver o seu País dominado por outrem, lhe angustiara a alma e o espírito desde a primeira juventude.

 

Ele que não pudera viver em Espanha porque a Espanha nos oprimia, quis e pôde evocar, com veemência e sinceridade, a cólera, o arrojo, a bravura inflexível de Viriato e das suas hostes, ameaçados e perseguidos pela força e pela ambição romanas.

 

O pastor da Serra da Estrela respirara o mesmo hálito beirão que mais tarde bafejaria à nascença o futuro cantor das suas glórias. Irmãos, ambos, irmãos através dos séculos, pela forte, comum e desinteressada devoção ao berço natal. O poema de Brás Garcia de Mascarenhas dá legitimamente ensejo a muitas críticas e censuras? Quem o nega? Mas censuras e críticas de carácter só literário, não de natureza cívica. Nesse aspecto, possui grandeza incontestável. E, tal como o poeta imaginou um epitáfio vibrante para o seu herói, também nós nos atrevemos a lembrar que, na lápide em que a sua memória fosse alguma vez honrada e consagrada, estas palavras de justiça e de saudade se poderiam inscrever:

 

Brás Garcia de Mascarenhas, patriota insigne, tanto na sua heróica existência, como na sua poesia, soube sempre afirmar com altivez e sinceridade o seu devotado e profundo amor a Portugal.

 

 

 

     

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