O Fartura, moleiro de profissão nos Moinhos
da Coruja, era pessoa de reles nomeada.
Chamavam-lhe assim por ironia cáustica, visto que de suas portas adentro
sempre reinou a miséria, perpetuada por herança paterna. Ele próprio era a
imagem da fome: meão de corpo e seco de carnes, de olhos avinagrados
sumidos nas órbitas, cobriam-lhe o toutiço umas farripas de pêlos
eriçados, ressumando carências. Tinha um génio assomadiço, que explodia
por vezes em fúrias selváticas, ímpetos que ele acalmava sovando
desalmadamente a mulher e os filhos. De igual trato padeciam os burricos,
que diariamente alombavam os taleigos da farinha, encosta acima, a caminho
da Terra-Chã. Duma vez, na ladeira das Rodelas, a um jerico famélico que
se aninhou no trilho com peso da carga, e não pôde mais erguer-se, por
falta de forças, ali mesmo lhe espetou uma navalha no pescoço, e escoiçou
o sangue. A selvajaria deu brado e até meteu Justiça...
O demónio! Este Fartura.
Entretanto, no convívio com estranhos, ou comparsas de taberna, era cortês
e de boas falas. Naquela manhã em que me bateu à porta vinha manso como um
cordeiro:
«Senhor doutor, venho aqui para vossa «incelência» ter o incómodo de ir
ver a minha mulher que está para dar à luz. Deu-lhe uma «coisa»: começou,
com sua licença, a escoicinhar com os pés e as mãos, a revirar os olhos, e
a escumar da boca... E ficou-se a roncar... Sem dar acordo de si...»
Já sei. Eclâmpsia.
Vamos lá.
E acompanhei o moleiro até aos Moinhos da Coruja, que ficam a montante da
Ponte Nova na margem direita do Alva.
Pelo caminho o Fartura foi desfiando o seu rosário de desgraças: - «Duas
ovelhas mortas com baceira; um suíno - com sua licença! - enterrado com
malina; as «recolhenças» perdidas; e agora, a minha mulher...
É assim a vida dum pobre!
Só desandanças, senhor doutor! Só
desandanças!...
Não me alembra dum Samiguel tão escasso...»
A residência era por cima dos moinhos. Por baixo, tamborilavam as mós e
rugia o açude.
Encontrei a moleira em coma profundo, estendida sobre uma cama, que
ocupava por completo o cacifo de dormir.
Uma saleta contígua, que também servia de cozinha, era o único campo de
manobra ao meu dispor. Enquanto os ferros fervem na lareira ao lado,
observo a parturiente e ausculto o feto.
Este, manifesta sinais de sofrimento intenso. Para o salvar era preciso
agir depressa. Duas mulheres que ali aparecem, por caridade, servem-me de
ajudantes.
Com a rapidez possível, aplico o fórceps e extraio um cachopo em síncope,
que consigo reanimar. Eu próprio o lavo, preparo, e deito ao pé da mãe,
que continua em coma.
Regresso a casa com meia batalha ganha, mas preocupado. Nessa noite, pouco
dormi, a pensar na moleira...
De manhã, volto aos moinhos, e encontro-a no mesmo estado. E o pequenito,
a quem eu já queria bem, abandonado a um canto, embrulhado nuns trapos,
quase morto.
Apercebo-me do que lhe iria acontecer e tomo uma resolução: meto-o debaixo
do sobretudo e levo-o para minha casa, de presente a minha mulher, que o
acolhe com alvoroço e simpatia.
Estávamos casados havia pouco tempo, e ainda não tínhamos filhos. Se a
moleira morresse, seria aquele o primeiro, adoptivo. Deitámo-lo no nosso
quarto. E entregue aos desvelos da minha mulher, o Farturita começou a
agarrar-se à vida.
De noite, quando nos acordava a choramingar, eu dizia: - Quem sabe! Pode
estar aqui um santo, um sábio, ou... um ladrão!... Seja o que for, tem o
direito de viver. E viveu!
As minhas visitas aos Moinhos da Coruja prolongaram-se por uma semana,
para tratar da moleira, injectar-lhe soro, tentar salvá-la. No sétimo dia,
quando eu acabava de lhe injectar uma dose de soro, a mulher entreabre um
olho, depois o outro, fita-me, e numa voz que parece vir do outro mundo,
pergunta:
- «Quem é?»
- Sou o médico.
- «Ai!...»
E começa a palpar-se no ventre, que encontra diminuído, vazio...
Conto-lhe o que aconteceu...
A moleira continua a palpar, agora na cama, dum lado, do outro, como quem
procura alguma coisa, e a soluçar exclama:
- «E o meu filho! Morreu?»
- Não. Está em minha casa.
- «Ai!... Sim! Sim! No cemitério...»
- Não. Amanhã trago-lho.
No dia seguinte, levo o petiz à moleira. Esta, agarra-o, beija-o, mete-lhe
a teta na boca, e aperta-o contra o coração, num íntimo abraço de duas
vidas que acabavam de vencer a morte!
O Fartura, aproxima-se de chapéu na mão, e declara solenemente:
- «Senhor doutor, nem de rastos como as cobras posso pagar o que lhe devo!
E sobre todos os favores, ainda quero pedir-lhe mais um: - Há-de ser o
padrinho do cachopo.»
Fui efectivamente o padrinho e a minha mulher a madrinha. Contra a minha
vontade, puseram-lhe o nome de Vasco.
Deveria ser Moisés!...
E assim saldou o Fartura a conta dos meus serviços... |