CRÓNICA
 

A MULHER SERRANA

 

Muito poucas se distinguiram em posições de destaque ou sobressaíram no seu meio liderado por homens, apesar da constante luta empreendida na subsistência da família e da sua coragem ao enfrentar a dureza da vida a que estavam sujeitas. Refiro-me às mulheres da serra, nascidas nas aldeias recônditas do nosso concelho de Pampilhosa da Serra.

 

Com docilidade, bem cedo essas meninas aceitavam todos os sacrifícios impostos pelo isolamento dos lugares onde nasceram, como uma inevitabilidade da sua condição feminina, preparando-se para o seu importante papel de esposas e mães, raramente conscientes da importância que tinham na condução dos destinos do lar.

Enquanto o homem labutava só praticamente no trabalho agrícola, a mulher serrana ajudava-o nessa lida mas tinha ainda a sobrecarga das tarefas domésticas, a educação dos filhos e muitas vezes mantinha a seu cargo algum familiar idoso, desdobrando-se em diferentes tarefas, sem a preciosa ajuda de máquinas como actualmente acontece.

 

Começavam o dia na companhia das estrelas e eram normalmente as últimas a deitar-se. Com frequência até de noite lidavam para aproveitar a água das levadas, nas regas a adua, cantando para espantar a sonolência.

 

Que difícil devia ser cozinhar para a família quando havia tão pouco por onde escolher, servindo-se apenas do que conseguiam arranjar na horta consoante a época do ano! Caldo de castanhas no começo do Inverno, fritos de abóbora, salada rabaça com feijão, tortulhos e míscaros apanhados nos campos, papas de carolo, batata cozida, meia sardinha para cada pessoa, algum naco de carne de vez em quando se a família criava porco, porque a maioria das famílias eram numerosas e extremamente pobres... O mais usual era a broa e o caldo de couves, às vezes sem um fio de azeite porque até isso acabava.

 

Debruçadas sobre a fogueira, afogueadas pelo calor, iam gerindo, o melhor que podiam os fracos recursos de que dispunham.

 

Era a elas que os filhos pediam pão e eram elas que os consolavam, ouviam os seus queixumes ou lhes davam umas palmadas nas pequenas zangas do dia a dia, resguardando o seu homem para coisas de maior monta.

 

Tratavam da cozedura da broa que não é tarefa fácil, desde o acender do forno ao amassar da farinha e ao colocar no forno a massa fintada; faziam os enchidos em dia de matança do porco; tratavam das aves de capoeira, migando as folhas de couve com farinha; lavavam a roupa da família nas ribeiras e em certos dias faziam a barrela que devia ser desgastante. Roupas mergulhadas em celhas ou caneleiros, com água quente e sabão a que juntavam urina para branquear, mexe daqui, torce dali... um dia inteiro de esforço. Engomavam essa mesma roupa com os velhos ferros a carvão, soprando de vez em quando para espevitar as brasas.

 

Apascentavam o gado, faziam queijo, tratavam da casa esfregando o soalho com escova e sabão amarelo ou as panelas de ferro com carqueja e sabão azul e branco; para varrer utilizavam o vasculho feito de lentisca e moita; enfeitavam as prateleiras e em dias de festa até as paredes enegrecidas pelo fumo, com papel de jornal, que tinham de pedir a quem o tivesse, porque leitura era coisa que lhes estava vedada. Como podiam elas ler se a maioria não frequentara a escola devido à falta que faziam em casa para tratar dos irmãos mais novos e ajudar nos outros trabalhos. Instrução era para os homens, às mulheres competia cuidar da casa, diziam-lhes.

 

E como era valiosa para as mulheres a ajuda das crianças, que só o eram de nome, porque raros eram os momentos livres para brincar com a boneca de cracórdia ou o pião de madeira. Em dias de feira andavam quilómetros a pé com os sapatos na ceira para não se estragarem, apenas os calçando bem perto do destino, costume extensivo a toda a família. Por vezes, levavam ovos e outros produtos para trocar por sardinhas, que dinheiro não abundava, regressando ao fim do dia com o carrego à cabeça e os filhos pela mão. Mas eram uma alegria aqueles dias de convívio com os vizinhos das outras aldeias em que se trocavam notícias e sabiam novidades.

 

De quando em vez partiam para mais longe, como para a romaria da Senhora da Confiança em Pedrógão Grande ou para a Sr.ª das Preces, na Aldeia das Dez, e era em clima de festa que atravessavam as serras, quebrando a rotina dos seus dias de trabalho, dormindo num palheiro em Goulinho, vendo outras gentes, outras caras, assistindo à procissão, rezando à Senhora que também era mulher e entendia os seus pesares. Nunca se esqueciam de comprar uma medalha de açúcar ou tremoços para levar aos garotos que tinham ficado na aldeia.

 

Depois voltavam pelos mesmos caminhos, felizes pelo encanto do passeio, sem darem conta dos lanhos nos pés e das pernas doridas pela longa caminhada.

 

Muitas mulheres da serra eram mães de proles numerosas, sendo muito comum passarem pelo desgosto de ver morrer mais do que um filho pequeno devido à falta de assistência médica, como comum era haver mulheres que criavam os filhos de pais que se esqueciam de o ser, deixando-as sozinhas com a sua mágoa. Outras criavam igualmente os filhos sem a ajuda dos maridos que emigravam para longe; no princípio do século XX para a África, América e sazonalmente para Espanha, e mais tarde para alguns países da Europa. Outras ainda porque viúvas, vestindo de negro até ao fim dos seus dias conforme a tradição mandava, e havia também aquelas que sofriam na pele a agressividade dos maridos, infelizes pela bebida ou pelos desaires da vida... mulheres doridas mas tão solidárias e generosas.

 

Se apareciam mendigos daqueles que deambulavam de terra em terra porque não havia reformas nem já forças para o trabalho, eram elas que davam o naco de broa ou a malga de caldo, se o havia, ou arranjavam um canto na loja para o infeliz se resguardar.

 

A maternidade tornava-as volumosas mas não queixosas apesar dos incómodos e do mal estar, aguentando as transformações do seu corpo empenhadas nas sementeiras, nas regas, na lida diária das suas vivências.

 

Quando se aproximava a hora de ser mãe, não raro era alguma delas ser apanhada de surpresa no meio de algum trabalho, parindo em plena natureza, usando a sua força e fé para se desenvencilhar o melhor que sabia. As que os tinham em casa, eram rodeadas por um universo feminino em que o médico era substituído por outra mulher mais experiente que amparava a nova vida.

 

Tinham então direito ao luxo de uma canja e a permanecer na cama, não por muitos dias, no segundo ou terceiro dia já se levantavam para a rotina habitual, sabe-se lá com que sacrifício, porque a vida tinha de seguir o seu ritmo e a família precisava do maneio das suas mãos.

 

Mulheres enérgicas e lutadoras calando as dores e as angústias no seu amor maternal que nem sempre conseguiam expressar.

 

Ao final de cada dia, lá estavam elas ao serão ajudando nas debulhas ou descascando feijão se era estio; no tempo do frio, sentavam-se no aconchego da fogueira talhando e cozendo a roupa para a família, cerzindo as meias, tecendo as fitas a utilizar nas mantas, fiando o linho... ao som das conversas e das histórias, não sem antes se rezar o terço, que a devoção era para respeitar e um exemplo para os cachopos.

 

A animação do convívio desanuviava-lhes a alma das preocupações diárias, até cabecearem com sono, deixando as frases suspensas pelo cansaço dos dias longos, Também a organização dos casamentos lhes pertencia por direito. Para que nada faltasse à boda, era vê-las coradas pelo entusiasmo e pelo calor do lume, o suor escorrendo por debaixo do lenço, caprichando, nos temperos do cabrito e da cabidela, batendo energicamente as gemas destinadas às filhós, às tigeladas, ao arroz doce, ao pão leve... enquanto enxotavam os garotos, que lambareiros, não lhes largavam as saias na esperança de poder rapar os restos de massa doce agarrados aos alguidares de barro e às colheres de pau.

 

Mulheres de trabalho e de apego à família, multiplicavam-se em tarefas como a feitura do carvão ou prestando serviços em casas de pessoas com mais haveres.

 

Aos domingos corriam às eiras ou aos bailes realizados nas casas que dispunham de uma sala ampla para dançarem as danças aprendidas por gerações sucessivas, ao ritmo do harmónio e da viola, libertas e risonhas, esquecidas das horas difíceis.

 

Em jeito de homenagem singela, lembremos com orgulho essas mulheres serranas, dignas ascendentes das nossas raízes, que tão arduamente trabalharam ao lado dos homens para que a vida continuasse.

 

Apesar da posição discreta que desempenhavam na sociedade da época, podemos considerá-las as grandes obreiras deste concelho que tanto amamos, essencialmente porque foram elas que geraram nos seus ventres, os abnegados homens que muito lutaram pelo bem comum das suas gentes e do desenvolvimento das terras onde nasceram.

 

- Maria Antónia Neves

Publicado em ARGANILIA - Revista Cultural da Beira-Serra

 

 

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